quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

entrevista com Drª Dulce Bouça


"Uma estranha amizade

A vivência distorcida que os anorécticos e bulímicos têm da sua imagem corporal leva-os a comportamentos extremos para atingirem um ideal de beleza e felicidade cada vez mais distante. A doença é uma estranha amiga que tudo exige e nada dá. Pais, professores e amigos só muito tarde descobrem este segredo guardado a sete chaves. A primeira reacção é tentar entender e ajudar. Mas como se ajuda quem não quer ser ajudado?
Ir ao médico significa perder o controlo sobre o próprio corpo, significa voltar a comer, voltar a engordar. É contra este fantasma que luta Dulce Bouça, psiquiatra e psicoterapeuta na Consulta de Doenças do Comportamento Alimentar do Hospital de Santa Maria. A arma é a sua força interior, que se mostra na forma entusiástica com que fala do seu trabalho.

Como é que explica que a anorexia seja, por um lado, uma doença muito mediatizada e, por outro, incompreendida?
Dulce Bouça- É uma doença muito mediatizada porque põe a vida em risco. A maioria das doenças psicológicas não se vê. A anorexia vê-se no corpo, na imagem, no aspecto.
Por outro lado, porque é uma doença que vai de encontro a fenómenos culturais que estão difundidos: a pressão para ser magro, para controlar o corpo e para lutar contra o excesso de peso. É uma mensagem cultural que diz que as pessoas magras e que controlam o seu corpo são mais afirmativas e têm maior capacidade de luta, de trabalho e de sucesso. É uma doença muito mediatizada porque é considerada, por muita gente, como uma doença nova e na qual a pessoa está porque quer.

Essa mediatização não ajuda a esclarecer os pais que se defrontam com a doença?
DB- A mediatização da doença não ajuda ninguém a livrar-se do sofrimento psicológico. Ajuda a informar.
O problema é que as famílias muitas vezes só se confrontam com a doença quando ela já teve muito tempo de evolução. Os pais do adolescente não andam- e ainda bem que não andam- a vigiar insistentemente qual é o desenvolvimento corporal do filho. Esse é um aspecto particular da vida de cada adolescente que precisa de privacidade. Os jovens começam a fazer uma dieta para perder dois ou três quilos. Os pais apercebem-se e muitas vezes até facilitam porque preferem ter um filho de acordo com os padrões culturais de um corpo magro e controlado.
Há uma primeira fase da Anorexia Nervosa (AN) que não tem nada de perturbado nem de anormal, que é aceite por toda a gente. Os jovens começam a fazer uma dieta para perder dois ou três quilos.

Quando é que essa simples dieta passa a ser uma doença?
DB- Quando a pessoa depois de ter perdido alguns quilos começa a sentir que precisa de perder mais porque ainda não conseguiu sentir-se valor e segurança suficientes para se afirmar na relação com os outros. O que define a Anorexia Nervosa (AN) ou a Bulimia Nervosa (BN) é o facto das pessoas porem todo o seu valor pessoal e toda a sua auto estima no peso.

São pessoas com baixa auto estima, com necessidade de chamar a atenção?
DB- Não. São pessoas que a certa altura da sua vida porque passavam por uma situação traumática que as fez sentir inseguras, aderem a esta ideia de que se controlarem a corpo e se foram magros ficarão de acordo com os padrões ideais.
A dieta e a perda de peso funcionam como um factor que melhora e reforça a auto estima e a pessoa temporariamente sente-se muito afirmativa e até recebe comentários que são elogiosos: "estás a conseguir perder algum peso", "ficas muito melhor", "como é que estás a conseguir?". Portanto, há uma fase inicial de enaltecimento daquilo que é conseguido que reforça o sentimento de capacidade.
A partir de certa altura, este reforço positivo transforma-se numa obsessão, tanto mais quando o reforço deixa de vir do exterior. A certa altura as pessoas começam a dizer: "estás magro demais", "precisas de aumentar de peso". E aquilo que foi uma luta enorme começa a não ser reforçado pelo exterior, o que faz com que a pessoa cada vez mais se implique na própria solução que encontrou.

Numa entrevista que deu que os doentes não têm uma 'imagem distorcida’ mas sim uma 'vivência distorcida do seu corpo'. Qual é a diferença?
DB- As pessoas com a AN ao fim de muito tempo de terem perdido peso quando falam "tenho medo de engordar" não estão a falar de excesso de peso real, não estão a falar de obesidade, estão a falar que têm medo de ter mais peso do que aquele que têm agora. Porque dizem: "eu sinto-me mal mas não tenho nenhuma garantia que se começar a comer e voltar a ter o peso que tinha dantes, me sinta bem porque antes da dieta já não me sentia bem". Portanto, continua a perseguir um ideal que nunca mais é encontrado.

Porque é que escolheu como tema do seu último livro Anorexia, minha amiga?
DB- A partir de certa altura, esta obsessão pela comida, pelo conteúdo calórico dos alimentos, pelo controle do peso torna-se a única razão para viver o dia a dia.
Dia e noite, hora a hora, minuto a minuto só se pensa na fome que se tem, na necessidade de se lutar contra a fome, de contar as calorias, de comer aquilo que é o mínimo para não piorar. A anorexia toma na vida da pessoa o aspecto de uma presença como se fosse uma pessoa dentro da pessoa que lhe diz: "não podes comer", "tens fome mas não podes comer". Há uma parte da pessoa que vai tomando cada vez mais força devido aos rituais que ocupam todo o dia e muitas vezes ocupam todos os sonhos. Os sonhos são preenchidos por esta relação com a comida, que é uma relação completamente desejada e evitada constantemente.
Foi nesse sentido que eu lhe chamei uma amiga porque é uma presença permanente e dá segurança, e a pessoa não consegue separa-se dela. A certa altura a anorexia torna-se parte da personalidade, a pessoa só se conhece a si própria como anoréctica.

Existem factores genéticos que condicionam o aparecimento desta doença ou apenas uma doença de moda?
DB- A anorexia não é uma doença de moda. A moda funciona como o factor que desencadeia do processo, como uma mensagem a que todos nós somos muito sensíveis e os adolescentes ainda mais. Hoje em dia sabemos que há factores genéticos na origem da AN. Só virá a ter AN quem tiver uma vulnerabilidade, uma pré disposição genética que a certa altura é desencadeada. Essa vulnerabilidade tem a ver com a biologia da própria pessoa e com a relação com o seu corpo. Não há anorexia sem se ter iniciado uma dieta.

Como é que se desenvolve a relação médico/ paciente?
DB- Uma pessoa que tem esta vivência de controle sobre o seu corpo e sobre o seu eu, tem imenso medo de estabelecer uma relação com alguém.
Quase todas vêm à consulta trazidas pela família ou por indicação médica. Para essa pessoa tratar-se é voltar a comer e aumentar de peso, que é aquilo que mais assusta e aflige. Por outro lado, o terapeuta tem o poder médico dessa doença. É preciso que quem trate uma anorexia nervosa tenha um grande conhecimento da doença e saiba o que é que vai encontrar na pessoa que o procura. Tem que respeitar o momento de enorme sofrimento quando essa pessoa vai expor-se e pôr a descoberto o segredo que manteve para si: "há muito tempo que não como porque luto contra a fome". Coisa que as famílias não sabem. As famílias pensam que a pessoa não come porque não tem apetite. Nunca ninguém diz a uma família "eu não como porque não quero", isto é muito difícil de ser afirmado, até porque os pais nunca aceitariam, nunca entenderiam.
É preciso que o terapeuta não obrigue a pessoa a afirmar perante a família que não come porque não quer mas sim a mensagem que não come porque não é capaz. E é verdade. Quem tem há muito tempo esta luta contra o corpo não come porque não é capaz. Depois é preciso que os dois se entendam e que o terapeuta explique que o seu papel é ajudar, conhecer a doença, para poder estabelecer uma relação de confiança.
O terapeuta não vai obrigar a pessoa a comer contra a sua vontade, vai ajudá-la a encontrar dentro de si um caminho diferente deste. Mas claro que qualquer pessoa pode desistir do tratamento e voltar para a sua doença.

São muitos os casos de desistência?
DB- Esperemos que não. Quanto melhor correr o tratamento menos são as pessoas que desistem. Mas ainda há muitas pessoas que abandonam o tratamento quando sentem que não conseguem mudar a vida que atingiram. O trabalho do psicoterapeuta é muito duro. Eu costumo dizer que é mais difícil tratar-se que continuar anoréctico. Tratar-se implica passo a passo ter uma relação de confiança na outra pessoa e isto demora muito tempo. Nessa relação de partilha tudo é negociado. O tratamento da anorexia implica melhorar psicologicamente e recuperar a saúde. O psíquico e o físico estão interligados.

Os pais são envolvidos no tratamento?
DB- Qualquer tratamento para ser eficaz e correcto tem de implicar a presença dos pais.

Pode-se considerar a anorexia e a bulimia doenças opostas?
DB- Não, são doenças muito próximas uma da outra ainda que tenham muitas diferenças. O que é comum às duas é que os doentes põem todo o valor pessoal e a auto estima na imagem corporal e no peso. Mas as personalidades dos doentes são diferentes: os anorécticos restritivos são pessoas com características obsessivas e meticulosas, de grande rigor e controlo de todas as áreas da sua vida; os bulímicos têm uma personalidade muito mais impulsiva e precisam de uma satisfação imediata das suas necessidades. O que as distingue é que enquanto na anorexia há uma perda progressiva de peso na bulimia o peso mantém-se mais ou menos normal, só que com flutuações. A anorexia mostra-se e a bulimia evolui clandestinamente. Apesar disso, o tratamento destas duas doenças é bastante semelhante. O objectivo é conseguir um reequilibro alimentar.

Como é que as anorécticas encaram a vida futura, por exemplo o casamento e a maternidade?
DB- As pessoas com anorexia não acreditam que o futuro esteja marcado por esta situação. Querem casar, ser mães, ter formas, ter um corpo bonito, atraente e nenhuma delas quer ficar com o corpo tão emagrecido como tem. Quem tem anorexia não está preocupada com essas coisas do futuro, só está preocupada com o presente. O presente impede que se pense no futuro. Todas as doentes pensam: "o futuro começará um dia, quando eu começar a comer, e eu vou ser capaz de começar a comer".

Como é que é o dia a dia das doentes que estão aqui internadas no Hospital de Santa Maria?
DB- O dia a dia é preenchido com muitas actividades: aprendem a alimentar-se, têm terapias psicológicas duas a três vezes por semana, participam nas actividades ocupacionais do serviço, como seja fazer bolos, servir o café, organizam actividades lúdicas no hospital, participam em teatros, em actividades plásticas, como seja a pintura, escultura e expressão cultural. Participam as que quiserem. Quase todas acabam por querer participar, embora numa fase inicial as doentes tenham necessidade de estar recolhidas consigo próprias.
Mas a grande experiência do internamento é a de uma relação com os outros, coisa que as doentes tinham cortado na sua vida pois viviam só para o controle alimentar.

As doentes quando se encontram conversam, partilham experiências?
DB- Sim porque têm a sensação de ser compreendidas por alguém. Não há ninguém que compreenda a anorexia a não ser quem a tem. Nem os terapeutas compreendem em absoluto. Quanto mais conhecerem a doença e tiverem a experiência de a tratar, mais se aproximam de a compreender. É útil partilhar com outras pessoas que têm a mesma doença mas também é útil falar com alguém que esteja do lado de fora, que é o terapeuta. Porque é muito difícil para uma pessoa sentir-se ajudada por alguém que está exactamente na mesma situação.

Estabelece amizades com as suas pacientes?
DB- Claro que sim. Numa relação terapêutica estabelece-se sempre uma amizade. Não é uma amizade igual às outras, mas é talvez das relações mais intimas que se estabelece entre médico e paciente.

O Prof. Daniel Sampaio disse que em relação à anorexia está tudo escrito. Não há mesmo nada de novo para dizer?
DB- Excepto sobre a relação terapêutica. Só a terapia consegue levar uma pessoa a abandonar aquilo que se tornou o fulcro da sua vida e única razão de ser. É uma relação terapêutica muito particular. Tem que juntar dois aspectos, por um lado uma grande aceitação das resistências do outro, por outro o não desistir. É uma relação de grande intimidade, de grande proximidade de grande troca, mas também de uma grande luta. Durante muitos momentos, o terapeuta e o paciente estão a lutar por coisas diferentes. Mas é preciso que essa luta caminhe no mesmo sentido."


obs raioverde: só para vos dizer que vivi na 1ª pessoa a experiencia de lutar contra a doença - e sair dela !!! - de maos dadas com esta formidavel psiquiatra e, pelo que aqui vêm, a 1ª coisa que nós enquanto doentes podemos ver pelas palavras dela, é que tem um conhecimento profundo, autentico do que nos vai bem fundo da nossa alma totalmente rachada como diria F.Pessoa para exprimir o estado mais miseravel duma alma humana. E talvez por isso, ou pela sua propria excepcional humanidade, me fez sentir, depois de uma longa jornada de solidão, um ser humano, respeitavel e menos só no meio da sua solidão incompreensivel e incompreendida de todos, menos dela (da drª Dulce).
bjs

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